Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
31/03/2008 19h25
O golpe militar de 1964 e a dor

Todo ano, quando vai se aproximando essa data, me invade uma angústia esquisita, uma dor pela dor, uma dor que não foi minha, mas que ainda é minha, que sempre foi minha. Um vazio, um vácuo, um limbo.

Eu era neném, na ocasião do Golpe Militar de 1964, e não tenho memória própria, só mesmo o que li, o que ouvi falar, e o que, mais tarde, entendi que havia acontecido no meu país. Entendi que o tal golpe interrompeu o governo do presidente João Goulart (Jango), eleito pelo povo, e confirmado através de plebiscito, em 1963.

Hoje entendo que o golpe de 1964 não interrompeu apenas o governo legítimo de um presidente eleito pelo povo, mas interrompeu a história da nação, a evolução natural de toda uma geração, num momento em que o mundo todo aderia a uma nova ordem social, a um progresso inevitável de qualquer pós-guerra, mas, principalmente, desfigurou a identidade do nosso povo, que nunca mais se acertou, pelo hiato de uma ou duas gerações de amordaçados, alienados e sem objetivos.

Não sou politizada, nem de direita, nem de esquerda, muito pelo contrário, até porque não tive informação e vivência suficiente para tanto, mas sei, como qualquer brasileiro, que durante a ditadura militar (que durou até 1985, quando, indiretamente, foi eleito o  presidente civil  Tancredo Neves, que infelizmente não chegou a assumir), o país passou por um verdadeiro remendo. Foi obrigado a conviver com a dor, com o silêncio, com a censura, com as injustiças, com a força. 

Palavras como tortura, guerrilha, desaparecimentos, terrorismo, nunca dantes ouvidas nestas paragens, passaram a ocupar o inconsciente coletivo, incomodando e atormentando, quer pelo medo da vida de perigos, quer pelo silêncio dos inocentes, quer pela deturpação até de nossa história, mas, fundamentalmente, pelo cruel amordaçamento das famílias, das escolas, das notícias, das escolhas.

Alguns certamente consideram o golpe como um "mal necessário", surgido do temor do expansionismo comunista (o perigo vermelho) e do desejo de desenvolvimento nacional, administrando o país e que, por um lado, teria impedido a implantação de um regime de esquerda e, por outro, seria responsável pelo Brasil ter se tornado uma das grandes economias do mundo, embora, aos custos da contração de uma grande dívida externa.

Hoje percebemos a herança na educação, na saúde, na migração interna, na falta de planejamento do crescimento das cidades, na economia informal, na total falta de orientação de uma geração que não aprendeu a escolher, como uma nação de escravos que recebem a carta de alforria e não sabem o que fazer da liberdade.

Sinto a dor dos mortos, dos torturados, dos abusados pelo poder, das mães desesperadas, que só podiam chorar e imaginar as atrocidades pelas quais seus filhos - filhos da Pátria - estariam passando ou correndo o risco de passar, por uma luta idealista, pela volta da liberdade, por um futuro sadio.

Sinto a dor de ver a inutilidade de tanto sofrimento, tanta luta, tanta energia desperdiçada, quando olhamos nosso país sendo a cada dia mais e mais vilipendiado pelos representantes do povo e pelo poder paralelo imposto por outro tipo de violência.

Ouço gritos no dia 31 de março, sinto cheiro de sangue, sinto gosto de morte, vejo fantasmas brasileiros arrastando correntes nas ruas, deitando nas calçadas, ao relento, junto aos indigentes, que são torturados pela miséria, pelo descaso dos governantes e pela absoluta falta de amanhã, pela distração que a mídia proporciona, alienando jovens e adultos na frente da telinha, num voyeurismo descabido, ceifando os neurônios do verdadeiro conhecimento.

Seria muito mais doloroso dizer tudo isso e aceitar da janela o tempo passar. Mas as águas de março fecham o verão e trazem as cores de abril, e a promessa de vida em nosso coração. Caminhando e cantando e seguindo a canção, no fundo, no fundo, somos mesmo todos iguais, braços dados ou não. E eu, poeta, ainda acredito nas flores vencendo o canhão.

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Publicado por Lílian Maial em 31/03/2008 às 19h25



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