Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
01/09/2007 12h20
A CRISE

®Lílian Maial


De uns tempos para cá, tenho ouvido falar muito em crise. É crise de adolescência, crise dos trinta, crise dos quarenta, dos cinqüenta, crise de identidade, crise existencial, crise por não ter nenhuma crise!
É quando se nasce que deve acontecer a maior de todas as crises. Imagine só: a gente lá dentro, protegidinho, no quentinho, acolchoado, recebendo tudo que é tipo de carinho, ouvindo aquela vozinha doce... de repente: opa! Uma tal de luz invade os olhinhos, vêm os barulhos todos de uma vez e, para nos receber ao mundo, um sonoro tapa no bumbum. Isso é que é crise! Não há neném que não pense: “Quero voltar!”.
Depois vem a crise das descobertas do mundo, quando se aprende a andar (não sem antes levar alguns belos tombos), quando se aprende a falar, e a palavrinha mais ouvida passa a ser NÃO. Não pode isso, não pode aquilo. Não há criancinha que não entre em crise, ainda mais se tiver um irmãozinho ou irmãzinha com quem dividir os carinhos da mamãe e do papai.
E a crise do primeiro dia na creche ou escola? Ser abandonado completamente só e indefeso, ver a mãe virar as costas e simplesmente ir... e o pobre nenê ficar lá, à mercê daquelas tias horrorosas, daquelas crianças perversas, daquela cozinheira que só sabe fazer legumes, verduras, saladas sem graça... Nem uma batatinha frita... buá!!!
Aí começam as crises inerentes à infância: escola, provas, amiguinhos (nem sempre tão amiguinhos assim), professores cruéis e predadores, competições, curso de inglês, natação, balé, judô, e nem um tempinho pra brincar de ser criança...
Pensam que esqueci da puberdade? É quando nem bem se é adulto, e já não se é mais criança. Aparecem espinhas, mudança na voz, mudança no corpo, falta de vontade pra qualquer coisa, sonolência, indisciplina, descobre-se que pai e mãe são – pasmem – humanos! Aí vêm os pêlos indesejáveis, a menstruação, a ereção, a ejaculação, a masturbação, um não se saber o que fazer com essa tempestade de hormônios, e ainda ter de se afirmar, buscar uma identidade. Realmente, uma das piores crises. Isso sem falar em ter de aprender como lidar com drogas, preferências sexuais e violência.
Alguns passam pela adolescência sem, de fato, a viverem, sem provar das delícias de se cometer loucuras em nome de uma rebeldia de quem se sentiu traído pela vida, pelos pais, por Deus. E isso pode se dar por uma série de razões, inclusive pela assunção – voluntária ou não - de compromissos precoces. Esses, possivelmente, terão necessidade de vivenciar sua adolescência bem mais tarde...

Muito bem, de repente se fica adulto, mas ninguém avisou nada. Foi assim, de repente: ontem se era um moleque ou uma moleca, no dia seguinte se é adulto, responsável, com uma espécie de peso sobre os ombros. E é quando surge o tal do medo. Mas não o medo de escuro, o medo de bicho papão. Antes fosse! É o medo do fracasso, o medo da escolha errada, o medo dos medos do mundo, das doenças, da competição, da desumanidade. É quando se toma conhecimento mais aprofundado sobre a morte e seu real significado, sem o romantismo das historinhas infantis.
Nisso, os novos adultos entram para a faculdade, o mercado de trabalho, casam, têm filhos, e a vida vai passando, dia após dia, numa roda-viva que não dá tempo pra se ter ou perceber crise alguma. São jovens, saudáveis, lutam e se ocupam de tantas responsabilidades e infinitos prazeres também.
Só que, num belo dia, o trabalho se estabiliza, os filhos crescem, saem de casa (ou tornam-se absolutamente independentes) e aquelas férias que tanto adiamos parecem, subitamente, enfadonhas. O que fazer com os dias livres? Aonde ir? Como se divertir? O que nos diverte mesmo? Quem somos nós de verdade? O que há por trás desse rosto, desse corpo (que já não é o mesmo), dessa alma (que nunca foi tateada antes)? Surge uma tristeza, que não se sabe de onde vem, como que uma incompletude, uma irrequietude. De pronto, as coisas tão certas, tão arraigadas, tão verdadeiras, perdem o sentido, a razão, e as verdades passam a não parecer tão firmes assim. Vem a necessidade de viver tudo de uma vez, de viver cada dia como se fosse o último, ou o único que se teria pra viver. Há pressa em ser feliz, como se até então nunca se tivesse realmente sido.
Essa é a famosa crise dos quarenta, quando o medo do envelhecimento, da doença, da limitação, da morte, começa a chegar cada vez mais perto, a povoar um percentual cada vez maior dos nossos pensamentos. Essa crise é das mais cruéis e difíceis, justamente porque se dá com o crescimento dos filhos e sua separação dos pais (seja física ou apenas emocional), coincide com a pré-menopausa nas mulheres (que vem com o fantasma da esterilidade, do tornar-se seca como mulher, muitas vezes fazendo com que elas se sintam atraídas por rapazes, como forma de afirmação da juventude e do poder de atração) e a insegurança da manutenção da virilidade nos homens (que faz com que muitos procurem a afirmação na conquista de mulheres mais jovens). É a fase mais arriscada para os casamentos (que têm nessa ocasião o maior índice de separações).
É extremamente complicado, para algumas pessoas, atravessar essa crise. Nas mulheres, a noção da proximidade da esterilidade, de não poder mais procriar, está intimamente ligada à condição de fêmea, à sensualidade, enfim, mescla confusa da função de perpetuação da espécie com o usufruto do prazer. Assim, ela entra em desespero pela possibilidade, cada vez mais próxima, de deixar de ser a mulher atraente, quente, úmida, bonita, esbelta e sedutora que sempre se soube, mesmo que isso só aconteça na sua mente, no seu íntimo. Por conta disso é que ela passa a se preocupar com a aparência (mais que antes), a fazer dietas, entra em academias, muda o vestuário, procura fazer tratamentos de rejuvenescimento, na tentativa de adiar, de driblar o implacável tempo.
Nos homens, a coisa se passa de maneira semelhante, só que neles, como não há a cessação de uma função biológica (não têm uma menstruação para acabar), é mais tênue e lenta. O homem de quarenta (ou perto disso) começa a desenvolver os traços familiares característicos da genética: ficam calvos, os cabelos embranquecem, adquirem uma barriguinha, aumentam de peso, reduzem a agilidade e, por conta do somatório disso tudo, se enxergam menos atraentes e questionam sua virilidade (que também não pode ser igual ao que era aos dezoito anos). Alguns tendem a acompanhar bem de perto os filhos, tornando-se amigos de seus amigos, buscando programas com pessoas bem mais jovens, chegando a adquirir hábitos e linguajar próprios dessa faixa etária; outros testam o seu “poder de fogo” paquerando meninas que poderiam ser suas filhas. Muitos se separam das esposas de quarenta e casam com essas garotas, ns busca da eterna juventude.
Como nos homens esse processo é bem mais lento, pela não existência de um ciclo que cessa, essa crise dos quarenta pode durar até depois dos sessenta, inclusive porque, neles, o medo da morte e da substituição é muito mais presente que nas mulheres (risco de doença cardíaca, medo de perda de emprego, medo da perda da condição de provedor, que eles associam à masculinidade até os dias de hoje).
Mas há homens que entendem seu momento e acompanham toda essa mudança com vitalidade, cuidados com a saúde, disposição física e mental, e tornam-se, esses sim, os verdadeiros meninos, sem deixar de olhar no espelho.

Depois de um tempo de furor e embriaguez de juventude, há outras mudanças que a vida prepara: tanto homens, quanto mulheres começam a perceber a solidão. Os filhos saem de casa, um a um, e sobrevém a “síndrome do ninho vazio”, que é um conjunto de sintomas, que habitualmente acomete mais a mulher, mas que afeta toda a casa, com uma instabilidade emocional coletiva, tendência ao egocentrismo, ou seja, cada um, por pena de si mesmo, procura se dar mais atenção, em detrimento do que sempre dispensou aos demais. Vira um círculo vicioso, pois os demais, sentindo o abandono daquele, também naturalmente o isolam.
Simultaneamente, vem o fantasma da aposentadoria, que representa, sem sombra de dúvida, o degrau de entrada para a assim chamada “terceira idade”. Se a pessoa não tiver uma cabeça aberta e não possuir uma variedade de interesses e dependências outras, entra em profunda depressão, se deixa abater e adoecer, e torna-se amarga, soturna, ranzinza, sem atrativos, limitada física, intelectual e emocionalmente, afastando lentamente todos os outros de seu convívio, agravando sua sensação de isolamento e menos valia.
Essa é a crise da terceira idade, que a nossa civilização, notadamente a ocidental, faz questão de alijar. Daí o horror dos indivíduos maduros de se aproximarem dessa faixa de idade, que representa a velhice, só que de uma maneira doentia, quase que representando uma sala de espera da morte, o que não é absolutamente verdade, haja vista os grandes nomes das artes, das ciências, da política, do jornalismo, enfim, de todas as profissões que contribuem para a evolução do ser humano, terem projeção maior e reconhecimento justamente quando são mais velhos e acumularam conhecimento.
Todas essas campanhas de valorização do idoso são importantes para a conscientização da população, mas de nada adiantam se o próprio idoso não conseguir ultrapassar mais essa crise, das tantas que já vivenciou.

O mais interessante, quando se pensa nas crises, é que sempre se está numa delas. Talvez se passe um pequeno período, dos 25 aos 35 anos, onde não se está preocupado com isso, ou melhor, não se tem muito tempo disponível para pensar sobre isso, mas é só aí. Na verdade, essa é a época da construção da vida, é quando se cai no mercado de trabalho, quando se escolhe companheiro, filhos, projetos e se trabalha intensamente para realizá-los, não sobrando espaço para preocupações individuais, já que se une esforços em prol da família.

Toda a nossa vida é entremeada de crises, e cada qual é tão mais importante, quanto menos estivermos preparados para ela. No fundo, enquanto se está nela, ela é a mais grave, a mais difícil, a mais séria de todas.
Para um bebê, não conseguir apanhar os objetos que despertam sua atenção gera uma série de reações físicas, que traduzem a angústia e até mesmo desespero que tais limitações lhe causam.
Para um adolescente, as transformações pelas quais passa, o ter de escolher o futuro através da profissão, quando sequer conhece o que existe por aí, causa muita ansiedade, aliada às tempestades hormonais, que provocam mudanças abruptas em sua aparência externa e interna, muitas das vezes solitárias, sem que os adultos ao redor se dêem conta.
Enfim, cada fase é uma etapa na caminhada, com encruzilhadas peculiares a cada estrada, onde cada pé sente conforto em determinada maneira de pisar. E não adianta comprar os sapatos mais caros, aparar as unhas ao máximo, tentar se esquivar de buracos, cascalhos e lama, pois tudo só depende da intensidade do salto que cada um pode dar, e de como se preparou para os pulos.

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Publicado por Lílian Maial em 01/09/2007 às 12h20



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