Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Textos

HOMEM DE AÇO
por Lílian Maial


Numa certa manhã, Nancy acordou diferente.
Intrigada com as sensações esquisitas que se lhe invadiam (como uma incrível vontade de coçar o saco), correu até o banheiro, levantou o tampo do vaso e... gritou! Ahhhhhhhhhhhhhhh!!! Horror!!! Ela viu que tinha um troço entre as pernas, um pênis! Um "senhor" pênis!
Apertada que estava, urinou (para variar, como todo portador de um pênis, fora do vaso).
Sem querer saber de fato o que acontecia, como quem já pudesse adivinhar, voltou-se ao espelho e constatou, com um desespero incontrolável, que estava, ou era, ou seria... um HOMEM!

À princípio, sabia que estava num pesadelo e que era absolutamente impossível, pela sua lógica científica, que aquilo pudesse estar realmente acontecendo.
Atravessada essa etapa, até que apreciou o tal sonho/pesadelo, e tentou fazer dele algo verdadeiramente prazeroso. Balançou então solenemente o novo apêndice, admirou sua envergadura, sorriu para seu rosto que mirava seu semblante sarcástico e, de súbito, percebeu-se com uma fome de leão (sim, ela começou a usar adjetivos masculinos, no que se referia a ela mesma).
Correu para a cozinha e preparou o mais lauto café da manhã que poderia prever: 4 ou 5 pãezinhos, suco de manga, café, cereal com leite, bolo de chocolate, uma fatia de fruta... e tudo isso sem nem pensar em calorias! Ah, estava começando a gostar desse aspecto do sonho.

Bem, ia trabalhar. Mas o que ela fazia?
Inexplicavelmente, abre o guarda-roupas e só encontra calças, camisas, camisetas, um frasco pelo meio de Polo Sport, outro de Cool Water (um pouco doce para seu gosto) e, pasmem, 2 pistolas (uma ponto 40 e uma Glock), alguns carregadores e um coldre. Fuçando um pouco mais, ainda achou gorro, coturno, colete... e um distintivo! É... ela era um Delegado de Polícia! Um Homem de Aço!
Estava explicado esse seu súbito estado de alerta, essa necessidade de saber de tudo, da localização de todos, as notícias, enfim, uma fome de saber das novidades e estar a par de todas as ocorrências.
Instintivamente ela sabia para onde se dirigir.

Entrou na XYª DP e foi saudada por toda a tiragem, um misto de cumplicidade e inveja.
Inteirou-se da situação, despachou, sentia-se um machão por detrás da mesa, com aqueles vagabundos todos trucidando-a entre os dentes, e uma incrível responsabilidade e senso de dever.
Ah, seu ego precisava de algo mais, talvez perigo, ação!
Ela sabia que precisava parar com aquilo, ficar atrás da mesa, na varanda...
Resolveu reunir uns homens da sua confiança (já sabia quem era quem, a essa altura) e sair em missão "suicida" para dentro de uma das principais "bocas" das redondezas.
Foi com um fuzil, carregadores, luneta de precisão indiscutível, e uns companheiros bons no assunto, embora com munição precária, mas daqueles que você sabe que conta na hora em que desce o aço.

Subiam o morro, já escuro, luzes das ruelas nos iluminando, deixando-os mais expostos, ambiente desfavorável... de pronto uns ruídos e ventinho nas laterais da cabeça. Tiros! E de fuzil! E muito perto! Tentaram se esconder, pediram prioridade no rádio, e se comunicaram, no intuito de surpreender os meliantes, sem perder nenhum dos camaradas.
Quanto mais subiam, mais perigoso ficava. Ela suava. Adrenalina quase que palpável nas veias. Mas estava excitada, gostava daquilo, era quase um vício.
Como boa adicta, sabia como conseguir a sua droga.
Deu a volta com mais um camarada irmão e conseguiu uma posição privilegiada, na penumbra, atrás do ponto onde os bandidos atiravam. Sorrateiro, primo-irmão de alguma sombra, percebeu um fuzil G3 nas mãos de um dos vagabundos, mirou e conseguiu alvejá-lo. O outro ao lado a viu, fugiu, e ela foi atrás, no encalço do infeliz. O companheiro correu pelo outro lado, tentando cercá-lo.
Corria, corria muito, arfava (já não era tão fácil assim), conseguia enxergar o sujeito lá adiante. Vielas estreitas demais, casas de portas e janelas fechadas. Esquinas da morte. Escuro. Solidão. Onde está Deus? Pedras, calçamento inexistente. Cheiro de vala. O diabo do vagabundo não cansa? Tá cheirado, é isso. E como corre. Para onde foi? Perdeu a mira. Mas corria, corria. Cadê o compadre? E corria, e cansava, não podia parar. Onde foi se meter? Onde estava? Era aquele o seu dia? Engatilhada, dedo coçando, pronta para disparar, escuro e desconhecido caminho. De repente, ali estava ele, de frente para ela, lhe aguardando, possivelmente com tanto medo quanto ela. Nem sabia se era novo ou velho, se alto ou baixo, se ela ou ele. Disparou e ouviu o disparo dele. Brilho dos projéteis, como funestos fogos de artifício. Som arrastado, câmera lenta, vácuo, início e fim, segundo eterno.

Desconforto. Estava presa, amarrada, atada, pesava alguma coisa sobre ela.
Era seu homem sobre seus seios. Dormira pesado e entregue.
Homem de aço, menino de algodão doce e bolinha de sabão.
Seu cheiro de Polo Sport entranhado nas narinas.
Sua pele macia e seu jeito independente.
Acordou aos poucos, estalou o pescoço, sorriu, puxou-a para si, apontou para ela o peito, que repousou, serena, da árdua tarefa de livrar o mundo da sua presença. 


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Lílian Maial
Enviado por Lílian Maial em 17/01/2007


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