Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Textos

Poema de Outono
                                               ®Lílian Maial
 
 

Eu vi um verso vadio vagando na várzea.
Um verso de mais de metro, soltando rimas ao vento.
Fazia frio e o poema era de outono.
Tinha um pôr do sol nas bordas das dúvidas,
um ocaso trêmulo de expectativas.
Às vezes, uma gaivota interrogava o entardecer.
Vinha um bando de folhas atapetar o caminho da noite,
rastro da lua, milagre de ouro em prata.
 
Eu vi um poeta pisar na poça.
Parir quartetos inquietos e tercetos insones.
Era tarde e a madrugada suava de nervosa.
Vez por outra, um bêbado tropeçava numa letra vagabunda,
pé quebrado atrapalhando a poesia,
e seguia o bardo sem teto e sem mantra,
fazendo que não via a mula sem cabeça.
 
Eu vi um sol nascer branquinho,
cheirando a pão com manteiga,
chamando o verso vadio para o dia.
Ainda havia neblina nas palavras
e o poeta sentou-se à mesa,
entre hífens e vírgulas,
se empanturrando de café com sonho.
Lá adiante, na linha do horizonte,
uma andorinha alinhavava uma chave de ouro.
 

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Lílian Maial
Enviado por Lílian Maial em 28/03/2013
Alterado em 21/10/2020


Comentários
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OTAVIO JM
Um tocante e pleno manifesto!
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Milton Moreira
O cotidiano da vida travessa e os fragmentos que a ela se aliam, ou meramente se apresentam descompromissados, fazem deste texto um poema curioso/extraordinário: sobrepõe-se à trivialidade de quem, na janela, observa o mundo farto mas alheio, que requer seja a ele incorporadas metáforas ao sabor de versos aguçados e intrigantes. Privilégio da poetisa que detém onisciência, onipresença e poder sobre as infindáveis metamorfoses poéticas. Ou fábula, ou a história mais bem contada. De toda sorte, inteligente e maduro, porque surge sob as cores do outono. Tenho de ler, sim, outras vezes. Um abraço, Lilian.
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KATHLEEN LESSA
Belezura de poema, querida Lílian! A incrível coincidencia é que usei essa mesma imagem num poema outonal que publiquei ontem! Acredita (rs)? Vou até trocar a minha. Passe lá, se puder. Beijos, boa semana. Kathleen
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muito bom Lílian! alguns trechos até me lembram Manoel de Barros. E que delícia esse nascer do sol cheirando a pão com manteiga. Agora, pra mim, às vezes um pé quebrado numa letra vagabunda faz é ajudar a poesia. gostei bastante dessa sua poesia!



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